22.10.06

 

O Exemplo dos Galicismos do Eça e o dos Anglicismos do Futebol. Dois Casos de Estudo.

Tinha pensado escrever hoje sobre um tema que, de há algumas semanas para cá, tem surgido na Comunicação Social, quanto a mim, de uma forma assaz leviana, quando não mesmo asnática, denunciando uma geral falta de atenção e de rigor da parte dos diversos autores que o têm abordado. Trata-se de um tema que já aqui mesmo «tratei» várias vezes : o das relações luso-espanholas, no contexto actual da nossa comum pertença a um alargado espaço político-económico que é o da União Europeia.

Não quereria, no entanto fazê-lo, dada a sua particular delicadeza, sem concluir a última série de artigos sobre a presente moda, quase obsessão, dos anglicismos na linguagem dos portugueses.

Reconheço que pode haver casos em que nos seja especialmente difícil fugir à sua utilização. Há inovações tecnológicas que os impõem como uma inevitabilidade, pelo menos temporária. Por exemplo, como traduzir apropriadamente «software» ? Programação informática, além de não ser exacto, obriga à multiplicação vocabular, problema sempre presente quando se pretende traduzir do inglês, idioma por natureza conciso, mais ainda, provavelmente, passe a pretensão da erudição, que o latim.

O mesmo poderíamos dizer de muitos outros termos ingleses de difícil tradução exacta. Mas isso não deveria impedir-nos de, esforçadamente, procurarmos sempre encontrar os seus equivalentes em português vernáculo.

Primeiro, porque tal esforço decorre de uma curial obrigação de um qualquer falante natural do português para com o seu património linguístico. É nosso dever sumário falar a nossa língua com correcção. Já não vou daqui à famosa frase do Eça que nos aconselhava a falar patrioticamente mal qualquer língua estrangeira.

De resto, isto não era mais do que uma sua blague, galicismo muito do seu agrado, como muitos outros, desde o blasé, ao ennui, ao négligé, ao outrance, ao vol d’oiseau, ao malgré lui, ao demi-monde, ao bas-fond, ao avant la lettre, ao buffet, ao boudoir, ao bouquet, ao cliché, ao couché, ao coupé, ao degagé, ao élite, ao frappé, ao frisson, ao frondeur, ao gavroche, ao divertisssement, ao pot-pourri, ao première, ao matinée, ao soirée, ao poseur, ao pourboire, ao ouverture, ao rendez-vous, ao régie, ao souvenir, ao tête-à-tête, ao tableau, ao tournée, ao soustien-gorge, ao tounure, ao nuancée, ao charme, ao délicatesse, ao parvenu, ao passe-partout, ao joie-de-vivre, ao débâcle, ao déjà vu, ao noblesse oblige, etc., etc.

Tudo isto mereceria um estudo dedicado, como Campos Matos tem feito com as citações de Eça e o uso, por parte deste, de expressões latinas, na mais recente obra que aquele devotado estudioso da obra do grande Mestre da Literatura Portuguesa, notável criador do português moderno, aquele em que, hoje ainda, quase todos nós nos exprimimos.

Daqueles galicismos típicos do Eça, já quase ninguém faz uso, nem na forma literária. Dirão alguns que o mesmo sucederá, provavelmente, com os actuais anglicismos. Infelizmente, não estarei tão optimista, porque a preocupação com a compostura do idioma deixou de ser uma prioridade dos nossos concidadãos. Nem os Professores já se incomodam com isso, na sua propensão para desculpar tudo o que os alunos fazem de errado.

Certos Professores, até já se sentem embaraçados em classificar expressões utilizadas pelos alunos como erradas, tão fundo chegou a inibição. Lembremo-nos do que se passou em 2001, com a edição do Dicionário do Português Contemporâneo, produzido sob a chancela da Academia das Ciências de Lisboa, com o generoso subsídio da Fundação Calouste Gulbenkian, que, finalmente nos tirou da ignomínia de mais de 200 anos, desde que a primeira tentativa de elaboração do Dicionário da Academia havia parado no vocábulo «azurrar». Por pilhéria, dizia-se que os Académicos se haviam por aí ficado, conjungando colectivamente esse verbo de forte sonoridade.

Pois bem, dessa vergonha finalmente nos libertámos, mas com essa libertação veio também a incoerência do espírito da presente época, com o nefando pensamento politicamente correcto, que, paralisado ante a incapacidade de assinalar o erro, absolveu, sancionou ou abrigou muitos termos incorrectos, espúrios, como o «bué», ao mesmo tempo que ignorava imensos outros, como «asinha», por ex., que continuam, no vasto património da língua, a ser utilizados por artistas e escritores, sendo necessário conhecê-los para compreender textos dos séculos XX e XIX e, ainda mais, para poder chegar aos dos séculos anteriores.

Ao uso dos galicismos correspondeu uma época de hegemonia da cultura francesa, como agora ao dos anglicismos corresponde o de uma outra hegemonia, não inglesa, mas americana. O problema é que esta só nas áreas científicas e tecnológicas se destaca como de categoria igual ou superior à da média europeia. Nas outras, não.

E, se avaliarmos a sua cultura de exportação, a que é veiculada pelo Cinema, pela TV e, em geral, pelo mundo do audio-visual, teremos de considerar que quase nada daquilo que hoje vem dos EUA vale um pataco, mas apenas gera embrutecimento e alienação, que nos EUA já produziu estragos extensos e duradouros; na Europa, causará, com toda a probabilidade, o mesmo nocivo efeito. Este mal é de tal modo profundo e avassalador que, nos EUA, acabou por prejudicar a selecção de candidatos para o exercício do poder, no ponto mais alto da hierarquia do Estado. Como o paradigma americano tende a reflectir-se, passado pouco tempo de qualquer das suas manifestações, pelo mundo inteiro, em primeiro lugar, na Europa, teme-se, compreensivelmente, que o mesmo tipo de fenómeno se venha a registar aqui por estas - outrora - mais selectas paragens.

Estas amenas considerações não dimanam de nenhuma desafeição pela Cultura Norte-Americana, mas resulta tão-só da natural comprovação da sua grandemente imprestável produção actual, a sua dita cultura de massas, que tantos adeptos tem conquistado no mundo inteiro, incluindo na nossa Europa, onde já floresceram tipos bem mais interessantes de cultura, em qualquer área que se queira nomear.

Mais uma razão para a nossa prevenção, quanto à utilização de modas e paradigmas, só pelo facto de haverem sido cunhados além-fronteiras. Assim como fomos eliminando os galicismos, também deveremos começar a evitar e a substituir gradualmente os anglicismos por termos próprios da nossa língua, como passo elementar da defesa da nossa dignidade como Povo antigo, soberano, com uma personalidade cultural longamente afirmada.

Para os que pensam que isto é utopia, recordaria o que se passou aí pelos anos 30 do século XX, com um tema eminentemente popular – o Futebol/Football – de onde, com persistência e determinação, se apagaram os termos ingleses, como referee/árbitro, forward-centre/avançado-centro, goal-keeper/guarda-redes, back/defesa, middle-center/meio-campista, liner/fiscal de linha, half-back/meio-defesa, free-kick/livre directo, corner/canto, etc., etc.

Algum pundonor e alguma imaginação de uns quantos determinados pioneiros operaram a transformação da linguagem inicial, completamente ligada ao idioma da origem deste desporto de massas. Se isto foi possível, numa época de muito baixa escolaridade da população portuguesa, porque não acreditar que seja também hoje possível idêntico esforço vitorioso noutros áreas da vida quotidiana actual ?

Deixo esta pergunta à consciência cívica dos meus compatriotas e prometo vir a ocupar-me muito em breve do magno tema das relações luso-espanholas ou das relações entre Portugal e as diversas sensibilidades culturais peninsulares, sendo certo que Portugal deve privilegiar as relações com Espanha, num quadro de respeito mútuo pela soberania de dois dos Estados mais antigos da Europa.

AV_Lisboa, 22 de Outubro de 2006

18.10.06

 

Esclarecimento sobre o Uso e Abuso dos Anglicismos

Esclareço um ponto : nada tenho contra o uso do inglês como «lingua franca» dos tempos modernos. Julgo até que será o idioma mais apto a desempenhar esta função, por ser relativamente fácil de aprender e de falar, pelo menos num nível elementar suficiente para qualquer um se fazer entender e entender alguma coisa dos outros.

Nenhum outro idioma latino ou saxónico parece estar em melhores condições para tal. Com um vocabulário de 2000 palavras, já em inglês se pode sobreviver muito bem. Depois, a progressão já se torna mais penosa, principalmente no seu domínio escrito. Ainda assim, em qualquer outra língua culta do ocidente a aprendizagem é mais lenta e o seu domínio também.

Mas se nisto acordo, já no uso imoderado de termos ingleses na linguagem portuguesa, de uma forma abusiva e mesmo intolerável, como hoje vemos fazer, por muita gente, a maioria por pura pedantaria, isso, reprovo em absoluto.

Com esta tendência desleixada, o português corre o risco de se tornar numa espécie de crioulo, sem ofensa de quem usa este tipo de linguagem por razões histórico-culturais.

A situação é tanto mais grave quanto ela ocorre com o aparente entusiasmo dos próprios falantes naturais do português. Consta-me que no Brasil se verifica idêntico fenómeno ou talvez até mais agravado, pelo fascínio que a cultura norte-americana, sobretudo a cultura de massas, do mundo do espectáculo, diriam eles, do show-business, exerce sobre os brasileiros.

Muitas vezes, nem sequer se faz um pequeno esforço para procurar termos equivalentes em português. Por exemplo : precisaremos mesmo de dizer test-drive ou glamour ou fitness ou readable ou personal trainer ou coach ou mister ou lady ou gentleman ou back up ou table ou ranking ou label ou lay out ou screening ou printer ou delete ou paste ou log in ou user name ou pin ou... ou... ?

Não encontraremos, para todos estes termos ingleses, equivalentes vocábulos em português ? Não será isto tudo resultado de uma inaceitável preguiça mental, de mistura com um lamentável desconhecimento geral dos recursos da nossa Língua ?

É só contra isto que me insurjo. Podemos aprender quantas línguas quisermos e formos capazes, mas, por favor, comecemos por respeitar a nossa, estudando-lhe a Gramática, que não foi abolida, com particular atenção para a sintaxe e para a flexão verbal, sobretudo para certos modos e tempos, como os do conjuntivo. Não se estranhe a conjugação dos verbos na 2ª pessoa do plural, como também se deve estudar com maior cuidado o imperativo negativo, os verbos irregulares, os defectivos, com especial atenção para a especificidade do verbo haver, etc., etc.

Bem sei que tudo isto é trivial e que, antigamente, os alunos, na sua maioria, que terminavam a Instrução Primária dominavam estes assuntos, como saíam desembaraçados na Aritmética, sem hesitações na tabuada e resolvendo problemas quotidianos que envolvessem as várias operações fundamentais, conversão de unidades, equivalências, etc.

Porque parece isto hoje tão difícil de conseguir, não só na Instrução Primária como no Secundário e, às vezes, até nos Cursos Universitários ?

Como se deu tal degradação ? Quem responde por ela ?

Enfim, o tema torna-se praticamente inesgotável.

Sem pretensão de qualquer tipo de sabença, a ele voltarei. Espero, pois, ter esclarecido o sentido em que criticava o uso dos termos ingleses na nossa formosa Língua, «última flor do Lácio», na bela expressão de Olavo Bilac.

AV_Lisboa, 17 de Outubro de 2006

16.10.06

 

O Pseudo-Cosmopolitismo Linguístico dos Portugueses

Há uns tempos que ando com a ideia de escrever aqui algumas notas a respeito desta mania de os portugueses salpicarem os seus discursos, a propósito e a despropósito, com palavras estrangeiras, principalmente inglesas ou com expressões, ainda que portuguesas, de sintaxe copiada da Língua Inglesa.

No geral, isto é feito com grandes laivos de presunção e de suposta auto-valorização ou auto-promoção. Não há por aí cão nem gato que não solte a toda a hora o seu «é suposto que», o timing, o trade-off , o balanceamento, o site/sai-te, o off the record, o low profile, o leadership, win-win, o quick win, o kick off, o spread, o skill, o lifting, o piercing, o feeling, etc., etc, como se estes termos não tivessem tradução possível no Português, nem a nossa Língua dispusesse de termos equivalentes para traduzir o seu significado.

Só em raros casos, em particular nos relacionados com as inovações tecnológicas, isso é verdade, embora com algum conhecimento e engenho bastante, certamente seja possível descobrir no Português esses aparentemente difíceis termos equivalentes. A forma desleixada como damos por vencedora a tese da inexistência da equivalência desses termos no nosso idioma assinala a falta de orgulho ou atitude de submissão perante tudo o que vem de fora, logo assumido como melhor ou superior.

Esta nociva atitude dos portugueses assenta, em primeiro lugar, num manifesto grau de incultura, de grande desconhecimento daquilo que é português, a começar no idioma, em geral mal falado, mal escrito, mal pronunciado, mesmo por aqueles que, por profissão, estão obrigados a usá-lo com propriedade e correcção, desde logo, os jornalistas, os locutores da Rádio e da Televisão, comentadores e analistas da genérica Comunicação Social.

Um pouco de atenção e pudor por parte dos responsáveis desses serviços poderia operar a desejável transformação.

Na oralidade, surgem agora manias diversas como pronunciar as siglas à inglesa. Assim, o antigo MIT, até há alguns anos dito m-i-te, passou a dizer-se à inglesa ou melhor à americana : éme-ai-ti . Veremos se o mesmo irá suceder com a CIA, para passar a dizer-se : ci-ai-ei.

O mesmo poderá acontecer com o FBI - éfe-bi-ai -, a NATO - nei-tou, que já foi OTAN, como ainda hoje é para nuestros hermanos, e outras patetices do género, que traduzem, não um qualquer cosmopolitismo, mas uma execrável propensão para o servilismo, para a admiração basbaque perante tudo o que vem de fora, ao mesmo tempo que votamos ao esquecimento, ao abandono e à incúria um dos nossos maiores patrimónios, base da nossa mais profunda identificação cultural : a Língua, na qual, para Pessoa, residia a nossa verdadeira especificidade cultural, para ele uma espécie de Pátria.

Claro que os Professores dos vários graus do Ensino poderiam dar aqui uma ajuda forte, se se tornassem mais exigentes, primeiro consigo mesmos e depois com os seus alunos. Mas, para isso, seria preciso que o Ministério da Educação não os desautorizasse disciplinarmente, nem continuasse a parir esses absurdos terminológicos que só servem para espalhar a confusão, promover ideologias pseudo-vanguardistas que, invariavelmente, mais não visam que esconder profunda incompetência pedagógica, como recentemente se verificou com a divulgação da nova terminologia gramatical proposta para adopção nos graus de Ensino Básico e Secundário pelo Ministério da Educação.

Se os Professores e os alunos já andavam desorientados, com as sucessivas alterações curriculares que o ME tem produzido, agora ficaram mergulhados ainda em maior confusão.

Toda essa nova arrevesada nomenclatura em nada favorecerá a aprendizagem da Língua, primeiro objectivo que o Ministério deveria ter em mente, se ele próprio tivesse a dita em bom estado de sanidade.

Assim vamos, cheios de vento, no idioma como no resto, proferindo termos grandiloquentes, mas sem dominar regras básicas da velha Gramática, sem as quais as nossas crianças e adolescentes dificilmente conseguirão escrever português com clareza e correcção e muito menos inglês que, na verdade, bastante falta lhes fará na desabrida Globalização dos Mercados que terão de enfrentar.

Porém, desprezando a nossa cultura de origem, a nossa formação ficará sempre deficiente, envergonhando-nos perante a memória dos nossos antepassados que tão esforçadamente no-la legaram para que dela nos pudéssemos orgulhar, para que nela firmássemos a nossa dignidade de Povo soberano e independente.

É por isso nosso dever irrecusável estimar a nossa cultura, começando por respeitar a natureza da Língua que falamos, sem a desfigurar com a permanente introdução de estrangeirismos, sobretudo quando dispomos de termos equivalentes que os podem substituir com facilidade e vantagem. Basta que estejamos preparados para despender algum esforço intelectual nesse sentido.

AV_Lisboa, 15 de Outubro de 2006

9.10.06

 

Evocando José Pedro Machado

Aproveito hoje esta janela mediática, para anunciar a sessão de homenagem ao Ilustre Académico, Prof. José Pedro Machado (1914-2005), que a Academia Portuguesa da História, na sua sede, no Palácio dos Lilases, na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa, vai realizar, no próximo dia 11 de Outubro, pelas 15h00.

Como é sabido, José Pedro Machado faleceu subitamente, na sua casa, em Lisboa, com a provecta idade de 90 anos, em 26 de Julho de 2005, pondo assim termo a uma intensa vida de estudo e de trabalho.

Informado desta sessão de homenagem por uma das suas filhas, Rosa Machado, faço daqui um apelo a todos os que se interessam por temas da Língua e Cultura Portuguesas e por figuras que as têm enobrecido para que estejam presentes nesta sessão pública que a Academia Portuguesa da História, em boa hora, decidiu levar a efeito.

Dela seguramente sairá mais divulgada e justamente enaltecida a notável figura de Investigador, Professor e Cidadão que foi José Pedro Machado.

No início de 2005, a 9 de Janeiro, num artigo que então escrevi, sobre apontamentos linguísticos, citei elogiosamente o nome honrado do Prof. José Pedro Machado, Académico Emérito, com largo currículo acumulado, numa longa vida de dedicação ao Estudo, à Investigação e à divulgação do seu multímodo saber, em especial, nos domínios da Filologia, da Língua Portuguesa e da História Pátria.

Na altura, prometi dedicar-lhe um ou mais artigos evocativos, porque me parecia amplamente merecê-los, por muitos e variados motivos, de que procurei enunciar os principais.

Em primeiro lugar, pela sua avançada idade, prenunciadora de naturais perigos para a sua saúde, urgia tributar-lhe todo o nosso apreço, pelo seu alto mérito de Professor e de Investigador e também a nossa profunda gratidão pela infatigável paciência com que ensinou várias gerações de jovens portugueses.

Por sobre essas nobres qualidades avultava ainda o seu exemplar comportamento cívico, cumprido com extraordinária afabilidade e simpatia, no convívio que connosco manteve, configurando um conjunto de virtudes difícil de reunir numa só pessoa em qualquer época considerada.

Mesmo sem dispor de elementos suficientes, ousei, logo após a sua morte, lavrar-lhe uma esforçada, porventura tosca nota biográfica, sem rebuço encomiástica, mas também animado de intenção claramente objectiva, chamando a atenção para a vasta e valiosa obra que nos deixava, onde ficavam sobejamente atestados todos os méritos que nele se reuniam.

Com efeito, julgo ser nosso indeclinável dever não nos acanharmos de enaltecer quem naturalmente o merece, sobretudo num tempo que promove tanto falso valor, tanto mérito duvidoso. Com José Pedro Machado, não estamos perante nada disto, porque ele indubitavelmente se encontra nos antípodas destas considerações.

Com os escassos elementos que a seu respeito logrei coligir e apesar da minha fraca preparação para tal tarefa, tentei com eles, ainda assim, modestamente, esboçar o seu perfil de académico e de cidadão, no que espero tenha sido bem sucedido, não por mim, mas pela figura que pretendi exaltar aos olhos dos nossos compatriotas. Fi-lo, honestamente, para ajudar a projectar a sua figura, para além dos restritos círculos académicos em que JPM era justamente conhecido, estimado e consensualmente distinguido.

O que sei da vida particular de JPM apurei-o nalguns esparsos artigos que ele mesmo escreveu, em locais diversos, sempre frugais, em consonância com a sua algo severa personalidade, que só muito contidamente o deixava falar de si próprio.

Mas, se da sua biografia os elementos me rareavam, já da sua personalidade eles me eram bastantes para o poder caracterizar, como Professor, como intelectual, como cidadão e como amigo, última condição em que com ele convivi, nos últimos anos, numa relação predominantemente epistolar.

Na verdade, foi o Dr. José Pedro Machado meu Professor da disciplina de Português, por três anos lectivos, no Ensino Secundário, na velha e reputada Escola Industrial Afonso Domingues, onde ele leccionou largos anos como Professor Efectivo, tendo nela também exercido funções directivas, em acumulação com a sua normal actividade pedagógica.

Como seu aluno, pude comprovar todo o seu vasto saber, aliado a uma competência pedagógica invulgar, de uma generosidade absolutamente excepcional e a justo título admirável.

Bastaria mencionar aqui a sua disponibilidade, num dos anos lectivos, para nos ministrar, extra-curricularmente, aulas de Alemão e de Italiano, para alunos voluntários, bem entendido, aos sábados de manhã, precioso tempo que JPM roubava às suas múltiplas tarefas e aos seus variados compromissos, para bem se aquilatar o seu carácter de educador benemérito.

Essas aulas, se não tiveram maior duração, foi tão-só porque nós, rapazes estouvados, irrequietos, pouco conscientes do mérito da sua iniciativa, lhe preferíamos a bola ou a preguiça do sono mais prolongado de fim-de-semana. De contrário, dela certamente muito mais teríamos beneficiado.

Ainda assim, se, anos depois, me dispus a aprender alguma coisa de Alemão, no Goethe Institute, ali no Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa, a ele certamente se deveu o gosto motivador dessa decisão, infelizmente, outra vez pouco aproveitada, embora por diferentes motivos. A ele também fiquei devendo um vivo interesse pelas letras, que me haveria de acompanhar pela vida fora, apesar do caminho profissional diverso que tomei, ao enveredar por uma carreira de natureza técnico-científica, que, erradamente, alguns julgam incompatível com aquele interesse.

Desse inconveniente divórcio, todos temos sido prejudicados, como muitos têm denunciado, com particular destaque para C. P. Snow, quando, há cerca de cinquenta anos, num livro que se tornou clássico, «As Duas Culturas», largamente expôs a situação de mútuo desconhecimento e até desapreço em que a cultura humanístico-literária e a técnico-científica viviam, cada vez com maior distanciamento, com as suas indesejadas mas inevitáveis consequências.

Naturalmente, que só escassos eleitos podem alcançar notoriedade equivalente em ambos os tipos de cultura, principalmente nos nossos dias, em que a especialização extrema a todos condiciona.

Há, todavia, grande vantagem para a nossa concepção do Mundo e da Vida em que as culturas humanística e técnico-científica entrem com maior equilíbrio na nossa formação, ao contrário do que sucede hoje, certamente até de forma mais agravada do que se passava quando C. P. Snow escreveu aquele importante livro.

Neste capítulo, será sempre uma sorte, às vezes uma bênção, para os jovens que encontram Mestres de excepcional categoria, numa qualquer área do saber, porque desse contacto podem despertar depois muitas das suas adormecidas vocações.

Mesmo que estas nunca venham a manifestar-se de forma exuberante ou particularmente assinalável, ficam esses jovens, pelo menos, com um benefício seguro criado para a sua vida futura, o qual se traduz em hábitos e gostos culturais definitivamente enraizados na sua formação.

Eis a enorme fortuna que a alguns é gratuitamente concedida, quando, sobretudo na sua juventude, são tocados pelos exemplos vivos desses Mestres de excepção, da estirpe de um José Pedro Machado.

Numa sessão de homenagem que lhe fizeram, quando se reformou, JPM avaliou em cerca de 10 000 o número de alunos a quem terá tido ocasião de leccionar e educar, nas suas sempre muito concorridas aulas.

Deste avultado número, muitos terão etica e culturalmente lucrado do convívio com tão excelso Mestre, alguns sem disso sequer se aperceberem. Mas, mesmo que apenas 1% daquele número tivesse tirado pleno proveito desse convívio, no seu rumo ulterior até à Universidade e, mais tarde, na vida prática, já teria saído dali uma centena de espíritos mais lúcidos e mais apetrechados, aptos a contribuirem, com proficiência, na sua justa medida, para o bem da Comunidade em que haveriam de se inserir.

Que maior orgulho ou satisfação poderá, da sua acção, um Professor retirar ?

Para muitos, parecer-lhes-á algo estranho que uma pessoa de tão alta craveira intelectual tenha permanecido tantos anos confinada a um Estabelecimento de Ensino Secundário, mesmo sabendo que JPM manteve colaboração constante com Academias e Instituições Culturais, no País e no Estrangeiro, durante toda a sua longa carreira de Professor. Ainda assim, continuará a parecer-lhes pouco relevo para tanto mérito.

Quando o evoco, na minha memória longínqua do fim dos anos sessenta do século passado, em que pela primeira vez foi meu Professor, vejo-o ainda como um homem bastante vigoroso, ágil no andar e no gesticular, rápido no discorrer, ao abordar qualquer assunto afim das nossas matérias de estudo da disciplina de Português.

Era já notória a sua popularidade entre alunos e Professores, que para ele invariavelmente nos remetiam sempre que houvéssemos de aprofundar qualquer matéria histórica, literária, linguística ou de simples cultura geral que por eles tivesse sido inicialmente tratada.

Era com toda a evidência a nossa estrela intelectual. Para aquelas virgens cabecinhas de adolescentes, um tanto perras ainda, mas ávidas de conhecimento, contactar com alguém que nos abria escancaradamente os mais variados horizontes culturais, resultava inevitavelmente num convívio de embevecida fruição.

Ainda hoje me lembro da forma como ele nos lia as medievas Cantigas de Amigo – Ai, flores de verde pinho, se sabedes novas de meu Amigo... –, os autos de Gil Vicente – Todo Mundo busca a Vida e Ninguém conhece a Morte... –, as Crónicas de Fernão Lopes – Acudi ao Paço, que matam o Mestre... – as estrofes dos Lusíadas – E, na Língua, na qual quando imagina com pouca corrupção crê que é a Latina... –, os sonetos de Camões – Alma Minha gentil... –, o Frei Luís de Sousa de Garrett – Quem és tu, Romeiro ? – o Bocage, do auto-retrato – Meão de altura, carão moreno, bem servido de pés... –, as verrinas de Filinto Elísio contra os galiparlas, o Eurico, de Herculano – Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver ?...– e tantas, tantas outras passagens célebres de obras antigas, famosas da Literatura Portuguesa, até às da actualidade, do século XX, quando nos recomendava, sobretudo, a leitura de A Selva, de Ferreira de Castro, todos esses episódios desfilam na minha jubilosa memória, saciada com tanta maravilha por aquele Mestre revelada.

Nestas leituras, em plena aula, ele literalmente representava, transformando aqueles velhos textos em coloridos pedaços de vida, impressionando a nossa sensibilidade, criando-nos, a alguns para sempre, o gosto pela leitura e pelo saber.

Como era, cumulativamente, o Bibliotecário da Escola, incitava-nos a que nos tornássemos sócios da sua bem fornecida Biblioteca, pagando uma pequena quota mensal, que nos permitia levantar 3 livros de cada vez, por 15 dias, para ler em casa.

Com frequência nos chamava a atenção para a conveniência de ler bons autores, portugueses e estrangeiros e não só nomes da Literatura, mas também da Filosofia, sobretudo, franceses, Descartes, em primeiro lugar.

São personalidades deste quilate que ferem a sensibilidade dos jovens, naquela idade em que se buscam ainda as vocações, em que o carácter está em plena formação, qual matéria plástica, pronta a ser forjada na emulação dos bons exemplos encontrados.

Professores como José Pedro Machado são raros, nos conturbados dias que correm, atrever-me-ia a dizer, hoje, quase improváveis, no húmus em que se formam os actuais mestres da nossa agitada mocidade.

Por isso mesmo, é importante divulgar estes casos invulgares, surgidos, lá do fundo dessa esperançosa Humanidade, como surpreendentes cometas no nosso depauperado firmamento de valores, para, uma vez desaparecidos, as suas réplicas só regressarem, quem sabe, ao fim de muitos e muitos anos.

Ficam por contar muitos episódios interessantes do nosso convívio com JPM. Noutras ocasiões, voltarei certamente a rememorá-los, para meu próprio regozijo e também, com certeza, para o de tantos dos seus discípulos e amigos, a quem deixou saudosa e indelével lembrança.

Honra, pois, aos verdadeiros Mestres, como José Pedro Machado e que o seu exemplo possa frutificar, apesar do inquietante futuro que um tanto sombriamente se vai por aí vislumbrando.

AV_Lisboa, 09 de Outubro de 2006

1.10.06

 

A Europa Jazente e Expectante

Nos dois poemas abaixo transcritos, de autores eminentemente reflexivos, como Pessoa e Unamuno, pode adivinhar-se uma atitude expectante de um ser real ou algo mítico que designaríamos por Europa.

A Europa jaz, posta nos cotovelos :
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal

Fernando Pessoa – in Mensagem, 1934

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Del atlántico mar en las orillas
desgreñada y descalza una matrona
se sienta al pie de sierra que corona
triste pinar. Apoya en las rodillas

los codos y en las manos las mejillas
y clava ansiosos ojos de leona
en la puesta del sol; el mar entona
su trágico cantar de maravillas.

Dice de luengas tierras y de azares
mientras ella sus pies en las espumas
bañando sueña en el fatal imperio

que se le hundió en los tenebrosos mares,
y mira cómo entre agoreras brumas
se alza Don Sebastián, rey del misterio.

Miguel de Unamuno, in Revista A Águia,1911

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Estes dois escritores tentaram, cada um a seu modo, perceber o sentido das civilizações e, num âmbito mais circunscrito, essa coisa algo inefável a que chamamos a Alma Portuguesa ou, num plano mais vasto, a Alma Lusíada, aquele ser que resultaria da comunhão de valores culturais e até espirituais presentes nos diversos povos com os quais os Portugueses conviveram ao longo dos séculos, nos diversos continentes aonde chegaram, desde a grande aventura iniciada na época quinhentista.

Quer Fernando Pessoa, quer Miguel de Unamuno, mais o primeiro, obviamente, deram-se a esse trabalho de paciente perscrutação daquilo que mais genuinamente traduz a nossa originalidade como povo que se disseminou pelo Mundo.

Cito Unamuno, pela curiosa analogia dos poemas e também porque este ilustre Professor e Reitor da Universidade de Salamanca, igualmente prolixo escritor, de grande profundidade cultural e de forte sensibilidade poética, foi dos raros intelectuais modernos espanhóis a interessar-se, com devoção, pela nossa cultura e pela nossa singularidade de pequeno povo ibérico e europeu, com assinalável presença na História.

Unamuno carteava-se e visitava com frequência outros escritores portugueses seus contemporâneos, como Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, Manuel de Laranjeira e Eugénio de Castro; era leitor das suas obras e sincero apreciador da Literatura Portuguesa, com particular interesse por Camões, Herculano, Camilo, Antero e Eça, cujas obras comentava com notório gosto e conhecimento.

Por estas interessantes e invulgares características a que acrescem a de ser um escritor de clara vocação filosófica, com algumas fecundas incursões pela religião, bem mereceria Unamuno que os Portugueses e também os Espanhóis lhe estudassem e divulgassem melhor toda a sua vasta obra.

Pessoa, na sua difusa produção intelectual, dedicou, como se sabe, vários estudos ao tema do Portuguesismo, ao Sebastianismo e ao Quinto Império, assuntos correlatos que reciprocamente se alimentam, e que Pessoa, num nítido propósito de exaltação colectiva, abordava numa tentativa de arrancar os seus compatriotas de um inconveniente estado de desânimo, porventura semelhante àquele em que hoje de novo nos encontramos.

Continuava, assim, Fernando Pessoa um trabalho a que já a distinta geração de 70, de Antero, Eça e Oliveira Martins, se votara com exaustivo empenho. Dele saiu, no entanto, esta geração de espíritos brilhantes, como sabemos, algo desanimada pelos escassos resultados alcançados.
O País, afinal, era mais refractário à mudança do que eles haviam imaginado quando moços universitários cheios de leituras, sobretudo francesas, de teorias e práticas revolucionárias, na Arte e na Política, que desejariam ver aplicadas em Portugal.

Talvez a sua maior decepção viesse dessa sua visão demasiado intelectual, pouco enraizada na realidade da vida da população portuguesa, nesse tempo muito precária, no aspecto material. No plano cultural, tampouco era melhor, com uma percentagem elevadíssima de analfabetos: mais de 70% da população não dispunha sequer das luzes das primeiras letras.

Viriam, depois, os republicanos, em 1910, a impulsionar com maior determinação, a patriótica tarefa da alfabetização dos portugueses, com a multiplicação pelo país de Escolas da Instrução Primária, onde o povo aprendia a ler, a escrever e a fazer contas, adestrando a mente no domínio das 4 operações fundamentais da Aritmética, ao mesmo tempo que fomentariam o ensino da História Pátria e a aquisição de alguns rudimentos da muito utilitária formação cívica.

Estas tarefas teriam continuação no que viria a ser o Estado Novo, de Oliveira Salazar, cuja primeira década de vigência se pode considerar bastante operativa na consolidação e na credibilização do Estado Português, que, em 1926, se encontrava quase desfeito das lutas partidárias intestinas da primeira experiência republicana.

Da Escola desse tempo, o do Estado Novo, ainda hoje Portugal beneficia. Oxalá pudéssemos vir a dizer o mesmo desta que temos andado a construir nos últimos trinta e poucos anos.

Afirmar isto, não é elogiar politicamente o Salazarismo; é tão-só reconhecer uma evidência, que faríamos bem em assumir com naturalidade, para podermos arrepiar caminho, sem descabidos pruridos de uma delicada consciência democrática supostamente ferida.

Que ganharemos nós em continuar, contra toda a evidência, a ficção de considerarmos a Escola Primária da Democracia, reinstaurada em Abril de 1974, superior à da Ditadura derrubada naquela data ?

Num âmbito mais alargado, parece já não restarem dúvidas a muitos espíritos que, afinal, o Progresso, principalmente no plano ético, não é nenhuma coisa garantida e a própria Ciência, com a sua adjuvante Tecnologia, se cresce em poder, cresce igualmente em complexidade, o que a torna ipso facto pouco acessível à maioria das pessoas, mesmo cultas, ao mesmo tempo que os seus maiores arautos, os cientistas consagrados pelas suas descobertas, perdem amiúde a noção dos fins superiores a que ela, a sua dama Ciência, se deve naturalmente subordinar.

Daí se ter tornado tão necessária a reflexão sobre os limites éticos da prática científica, que já levou à criação de espécies de Conselhos Superiores Interdisciplinares de Ética, entidades compostas por pessoas de formações diversas, de comprovada idoneidade científica e moral, encarregadas de estudar, aconselhar e propor normas ou regras que visem acautelar o futuro do desejado uso prudente da Ciência.

É preciso evitar que alguns aprendizes de feiticeiro, cientistas ou não, sobretudo se aliados a protagonistas políticos de minguados escrúpulos éticos, venham a comprometer o desejo de a Humanidade vir, conjuntamente, a viver de uma forma compatível com a noção de Dignidade que a Civilização, laboriosamente, no transcurso de muitos séculos a habilitou, a essa mesma Humanidade, a conceber.

A Europa, como Continente privilegiado, pelo progresso material e cívico alcançado, tem particulares responsabilidades neste ponto. Pode, de facto, a Europa muito bem ser esse ambicionado espaço de prosperidade económica e de harmonioso convívio cultural, porque reúne, mais que qualquer outro continente, todos os requisitos para tal desiderato. Mas, para o atingir, terá de abandonar a posição jazente, demasiado expectante dos poemas acima transcritos.

Refiro-me, em concreto, à recente decisão da Ópera de Berlim de anular a anunciada representação de uma das óperas de Mozart, Idomeneo, por sinal, uma das suas menos representadas, por receio da atentados terroristas de grupos islâmicos, eventualmente desagradados de algumas cenas mais escabrosas que o encenador tencionaria incluir, a exemplo do que se tem feito com essa peça desde há alguns anos, no exercício de uma liberdade criativa normal e até agora aceite sem qualquer contestação conhecida.

Estou ainda esperançado em que a firmeza da Chanceler Angela Merkel, venha a prevalecer sobre a insensatez da Direcção daquela instituição, na sequência de uma eventual recomendação superior. Se tal não suceder, pode, desde já, temer-se o pior, tanto mais que este lamentável episódio ocorre numa Nação que temos por firme na sua vontade política e rigorosa na aplicação das leis, no seu viver quotidiano.

Depois do caso de Salman Rushdie, quando ainda não havia nenhuma guerra no Golfo Pérsico, nem no Iraque, nem no Líbano, convém recordar aos que sempre encontram motivos desculpabilizantes para as actuações dos terroristas de motivação religiosa islâmica e aos que, a esse respeito, manifestam as suas eternamente insuperáveis inibições, tivemos já, sucessivamente, o assassínio na rua, em plena luz do dia, na tolerante Amesterdão, do realizador de cinema holandês, Theo Van Gogh, a crise das caricaturas dinamarquesas e os tumultos aleivosamente atribuídos ao discurso académico do Papa Bento XVI, sobre as relações entre a Fé e a Razão, na Universidade de Ratisbona.

Entretanto, surgiu a notícia de que, em França, terá ocorrido um episódio semelhante, no seu ultraje, com a ameaça de morte proferida contra um Professor de Filosofia, por fanáticos muçulmanos que não gostaram de algumas considerações que este Professor, no seu mais elementar direito de cidadania, terá feito sobre o Islão.

Tudo isto configura, aqui na Europa, um delicado problema de convívio inter-cultural, inter-étnico ou inter-religioso, que julgávamos arredado das nossas preocupações e com o qual teremos de aprender a lidar sem tergiversações, demonstrando de forma clara que não toleramos, por parte de nenhum grupo, daquelas afinidades ou de outras, qualquer tentativa, sob que pretexto for, de condicionamento cultural no nosso estilo de vida.

Valores como a liberdade de pensamento e a sua franca e multímoda expressão, há muito anos estabelecidos e respeitados na Europa, não podem ser condicionados por motivos de ordem religiosa, nem de qualquer outra. Por estes nobres valores e princípios muitos mártires houve aqui neste Continente, mais que em qualquer outro.

Se, por qualquer alegada razão, não formos capazes de honrar esta tradição, trairemos a nossa dignidade de cidadãos livres e, vergonhosamente, desmereceremos o sacrifício de toda essa gente que, no passado, sofreu para que hoje pudéssemos usufruir desses privilégios de natureza espiritual.

Quero crer que não assistamos a mais este indecoroso recuo.

AV_Lisboa, 01 de Outubro de 2006

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